Publicado por Redação em Gestão de Saúde - 21/09/2022 às 11:20:54
Saúde mental coletiva: a nova forma de aumentar o bem-estar das equipes
A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou no último mês de junho sua maior revisão global sobre saúde mental desde a virada para os anos 2000. O relatório mostra a escalada nos índices de adoecimento mental no planeta. Houve um aumento de 25% nos casos de depressão e ansiedade só no primeiro ano da pandemia, e o burnout foi oficializado como doença ocupacional no início deste ano diante da explosão de ocorrências.
Antes de 2020, muitas empresas começaram a olhar para a importância de cuidar da saúde mental de seus funcionários principalmente pelo viés da produtividade: previsões da OMS e de lideranças econômicas globais à época já alertavam para o prejuízo da ordem de trilhões ao ano que doenças como depressão e ansiedade podem gerar aos negócios, pois levam a afastamentos, alta rotatividade de funcionários, absenteísmo e presenteísmo, que é quando o profissional está no trabalho, mas com dificuldade de se concentrar e entregar resultados. Foi a senha para as organizações passarem a desenvolver ações e programas de bem-estar e oferecer benefícios que ajudassem as pessoas a gerenciar o estresse, diminuir a ansiedade e equilibrar trabalho e vida pessoal. Com o avanço da pandemia e as mudanças nos formatos de trabalho, a oferta desse tipo de recurso aumentou e se sofisticou, mas a saúde mental dos profissionais não melhorou.
Aulas de mindfulness, terapia online, semana de trabalho reduzida, sala de descompressão no escritório e tantas outras estratégias voltadas para o bem-estar individual são bem-vindas: funcionam para autoconhecimento e gerenciamento do estresse e podem ajudar a atravessar dias difíceis. Mas não são suficientes quando se trata de resolver dificuldades de saúde mental em sua origem, muito menos de modo sustentável. Isso porque o que tira as pessoas do sério no trabalho, como muitas pesquisas mostram, quase sempre está relacionado com culturas tóxicas, relacionamentos difíceis com chefe ou colegas, sobrecarga de tarefas, falta de autonomia e confiança, comunicação ineficiente. “A promoção de saúde mental no trabalho precisa ser pensada de forma coletiva e sistêmica, não por meio de ações isoladas e desconectadas da cultura da organização”, diz Francisco Nogueira, psicólogo e psicanalista e sócio da consultoria Relações Simplificadas. “Colocar à disposição do empregado uma porção de recursos e simplesmente incentivá-lo a buscar o próprio bem-estar pode se tornar mais um fator de pressão sobre ele, que tende a se sentir ainda pior quando percebe que, mesmo com apoio da empresa, não consegue ficar bem.”
Em qualquer ambiente de trabalho, quando alguém reclama que está com dor de cabeça ou outro desconforto físico, logo um colega estende a mão com um comprimido. Se ninguém tiver, há a possibilidade de se dirigir à enfermaria ou ao ambulatório da firma, se existir um. Para os especialistas, questões que afetam nossa saúde mental deveriam ser abordadas com a mesma naturalidade no contexto corporativo: todos deveriam se sentir à vontade para falar quando não estão bem e precisam de ajuda, expressar insatisfação com aspectos do trabalho, conversar sem tabu sobre questões emocionais, opinar, sugerir e errar sem medo do julgamento ou de colocar o emprego em risco. Para isso acontecer é preciso rever a maneira como se faz a gestão das pessoas, e investir em uma cultura de segurança psicológica. Ambientes psicologicamente seguros são aqueles em que as pessoas se sentem confortáveis para ser quem são, expressar ideias e visões com naturalidade, arriscar, opinar, discordar e se envolver em conflitos produtivos. “Lugares assim geram funcionários mais satisfeitos e conectados consigo e seus recursos internos, o que traz engajamento e resultados para as empresas”, afirma Francisco.
A grande demissão brasileira
Nunca antes de março de 2022 tantas pessoas haviam pedido as contas do emprego ao mesmo tempo no país: foram 603 mil demissões voluntárias, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do IBGE. Em fevereiro, foram 560 mil demissões, índice que já chamava a atenção. Os números não são comparáveis aos do fenômeno The Great Resignation (“A Grande Renúncia”) nos Estados Unidos, em que 4,5 milhões de trabalhadores deixaram seus empregos em novembro de 2021.
O perfil dos profissionais renunciando ao trabalho fixo também é diferente — por aqui, são os mais escolarizados que estão entregando o crachá —, mas os especialistas veem semelhanças quanto à motivação: um dos principais fatores é o desejo de mais qualidade de vida e uma ocupação sem tanto estresse e pressão por resultados.
Um levantamento da consultoria Blue Management Institute com líderes de organizações reforça essa percepção. Na enquete, 75% dos entrevistados disseram que decidiram deixar seu cargo neste ano por mais realização profissional, e 52% o fizeram para escapar da cultura tóxica da empresa contratante, sem ações voltadas para diversidade, inclusão, equidade e pertencimento. Entenda o que mais influencia ambientes favoráveis à saúde mental das pessoas no trabalho.
1. Liderança acessível
Gestores não têm que ser especialistas em questões de saúde mental, mas se sensibilizar com o assunto e assumir a responsabilidade de construir, com as equipes e a área de recursos humanos, caminhos para identificar e endereçar necessidades e pontos de insatisfação. Quanto mais horizontal for essa conversa, melhor. “Suspender a hierarquia e abrir espaços de diálogo sem tanta formalidade é importante para gerar proximidade e confiança e avançar na direção do que as pessoas precisam”, diz Carina Alvarenga, especialista em gestão de relacionamentos e sócia da consultoria Burithi. Também se espera das lideranças que colaborem para quebrar o estigma em torno do tema falando sobre ele e cuidando da própria saúde emocional.
Essa é a crença na Wiz, gestora de canais de distribuição de seguros e produtos financeiros. “É por meio dos líderes que as pessoas percebem o dia a dia na companhia, e os nossos são preparados para ter conversas transparentes e frequentes com as equipes, não só sobre desempenho e carreira mas sobre como estão se sentindo e como podem coletivamente melhorar o ambiente de trabalho”, diz a diretora de gente e cultura, Carol Bento. O diálogo permanente orientou a criação de treinamentos e a abertura de um canal de denúncias de práticas de assédio e discriminação.
2. Escuta aberta
Só é possível entender as necessidades dos funcionários ouvindo o que eles têm a dizer. “Mas a escuta precisa ser neutra e sem julgamento. Além de ouvir com atenção, é necessário checar o entendimento do problema colocado, antes de querer resolvê-lo ou opinar a respeito”, afirma Carina. “Quando a pessoa sente que está sendo ouvida com intenção, tem mais liberdade para se abrir, reflete sobre a própria fala e é capaz de chegar a outros patamares de solução.” Diante de um desafio, ninguém, nem as lideranças, deve achar que precisa ter todas as respostas ou certeza do que fazer. Saber ouvir outros pontos de vista, discordando se for genuíno e produtivo, fortalece o vínculo de confiança e leva a saídas inovadoras.
3. Relações positivas
Cultivar relacionamentos significativos, em que há apoio e troca, constitui um dos pilares da saúde mental e da felicidade, e isso vale também para o ambiente de trabalho. A produtividade está diretamente ligada à convivência.
Está claro que a inteligência coletiva, que nasce da liberdade para experimentar, falhar, perguntar e discordar, é mais valiosa do que a individual, por mais capacitado que seja o sujeito. “Conflitos e relações conturbadas sempre vão existir no ambiente profissional, e não se trata de tentar eliminá-los em nome de uma falsa harmonia”, diz Caroline Marcon, consultora especializada no desenvolvimento de lideranças. “O importante é que haja espaço e respeito para que todos possam se colocar com autoconfiança, dizer ‘não’ sem medo e admitir vulnerabilidades. Quanto mais conectada consigo e com a própria verdade, mais a pessoa se conecta com o outro.”
4. Propósito à vista
Entender a função que desempenha na cadeia de produção em que está inserido e a importância da atividade que realiza, independentemente da natureza do negócio, é fundamental para qualquer trabalhador se sentir valorizado e se dedicar ao que faz. Um levantamento recente da Gallup mostrou que 80% dos funcionários de organizações não se sentem engajados no trabalho. Os chefes têm função-chave nesse processo. “Mais do que um cargo, liderança é uma missão. Entre as responsabilidades dos gestores está a de conversar com os subordinados sobre o que desejam para a vida e a carreira, ajudando-os a entender se estão no lugar certo, fazendo aquilo em que realmente são bons e produtivos, ou se têm mais a somar em outra função ou mesmo outra empresa”, afirma Wilma Dal Col, diretora de gestão estratégica de pessoas do ManpowerGroup Brasil. “A perda de saúde mental é um pedágio que muitos acabam pagando por se sentirem desconectados e não verem sentido no que fazem. Não precisa ser assim.”
A Air Liquide, empresa francesa do segmento de gases industriais, aproveitou uma oportunidade durante um dos períodos mais críticos da pandemia para trazer à tona o que é trabalhar com propósito. Como fornecedora para hospitais, teve a operação fortemente impactada pela crise dos cilindros de oxigênio em Manaus, em 2021, e precisou lidar com funcionários sobrecarregados e preocupados. Assim que foi possível, convidou os motoristas que participaram da operação de transporte dos cilindros para compartilharem a experiência com colegas de outros setores. “Foi uma maneira de destacar o protagonismo desses profissionais e valorizar sua atuação, assim como a de funcionários das demais áreas”, diz Debora Trevisan, diretora de RH. “Quisemos mostrar que foram responsáveis por salvar vidas; não estavam simplesmente dirigindo um caminhão ou assinando um papel.”
Fonte: Esta reportagem faz parte da edição 81 (agosto/setembro) de VOCÊ RH