Publicado por Redação em Gestão do RH - 09/06/2020 às 11:44:52
A diversidade no mercado de trabalho pós-covid-19
Olhe para o seu ambiente de trabalho. Quantas pessoas negras você vê? Quantas são mulheres? Há alguém declaradamente LGBTI+ dentro da organização? Com quantas pessoas com deficiência você convive na empresa? Agora compare: elas estão representadas no mesmo número dos funcionários brancos, homens, heterossexuais? Se você trabalha no Brasil, é provável que a resposta seja não.
Embora o tema de diversidade e inclusão (ou D&I, como é chamado no mercado de trabalho) venha crescendo nos últimos anos, o mercado empresarial brasileiro caminha a passos lentos nas conquistas. Segundo o ranking Refinitiv, só há uma brasileira entre as 100 companhias de capital aberto com ambientes mais diversos e inclusivos no mundo, a Natura.
Em um contexto de mais de 19 milhões de empresas no País, segundo o Sebrae, a forma com a qual elas lidam com o tema de diversidade e inclusão varia entre diferentes graus de maturidade. Agora, com os efeitos da pandemia do novo coronavírus, grande parte delas tirou o pé do acelerador que conduzia esses programas.
Apesar do ritmo em desaceleração nos últimos meses, especialistas da área acreditam que o tema será imprescindível no mundo pós-pandemia e que deve ser retomado pelas empresas ainda durante essa crise global.
“Algumas empresas já compreenderam o valor do investimento na gestão de diversidade e inclusão e trabalham isso como estratégia de negócio, são as que mantêm os investimentos. Outras estão começando a entender como o tema impacta no negócio, então não suspenderam as ações, mas tiraram o pé do acelerador. Já as que não entenderam nada, que falam de diversidade e inclusão como marketing, nem fazem investimentos”, explica Ana Bavon, fundadora da B4People, que realiza consultoria e treinamento de cultura inclusiva.
Nos últimos meses, a empresa que ela comanda teve algumas palestras e treinamentos cancelados e outros suspensos por tempo indeterminado.
A desaceleração também foi percebida na Empregueafro, consultoria de recursos humanos focada na diversidade étnico-racial. Entre janeiro e maio, a empresa recebeu contato de 82 organizações interessadas em entender como funciona o processo de investimento em diversidade e inclusão, mas apenas uma contratou um projeto.
“Nunca tivemos urgência nesta pauta, exceto se a empresa passou por algum escândalo racial, mas muitas que já trabalhavam com isso congelaram projetos, outras que estavam ensaiando para começar o trabalho em 2020 simplesmente não avançaram. Elas também estão em um momento de crise financeira, mas a maioria tem falado que vai investir no tema depois da pandemia, quando a economia reagir”, conta a fundadora Patrícia Santos.
Enquanto o fim da pandemia não chega, os consultores de diversidade chamam a atenção de que é preciso que as empresas atuem agora para evitar que os grupos vulneráveis sejam ainda mais afetados.
“Uma cliente me disse esses dias que esse era o melhor momento para tratar o tema porque as pessoas estão mais sensíveis e permeáveis. Para mim, é isto. É um momento propício para que as pessoas reeditem seus comportamentos”, aponta Djalma Scartezini, líder de diversidade e inclusão da EY, multinacional.
“A covid-19 tem matado mais pessoas negras, são elas que estão trabalhando, que estão no transporte público, porque elas representam os cargos operacionais nos serviços essenciais. A maioria das pessoas que está de home office é branca. Esse seria o momento no qual as empresas deveriam investir em programas de capacitação, o momento que elas deveriam falar sobre isso dentro das suas organizações. É impossível uma empresa no Brasil se calar sobre essa temática”, aponta Patrícia.
Se gerir uma equipe a distância pode ser desafiador, fazer com que esse trabalho seja inclusivo é ainda mais difícil. Mas há empresas que têm tentado vencer essas barreiras. A consultora Katya Hemelrijk, que atua na Talento Incluir - consultoria focada na inclusão de pessoas com deficiência - conta que, com a pandemia, as organizações têm procurado a empresa para fazer o acolhimento emocional de pessoas com deficiência e que fazem trabalho remoto.
“Muitas pessoas que trabalham de casa têm gatilhos de vivência que são muito importantes. Eu vivi mais de 10 anos da minha vida em isolamento social por causa da minha doença [Katya possui deficiência física]. Quantas pessoas não vivem sempre o que a gente está vivendo hoje? Para elas, o cenário favorável era sair de casa, conviver. Há surdos que moram em casas que não falam libras, o trabalho era o lugar onde conseguiam se comunicar. Há pessoas com deficiência intelectual que estavam em programas de capacitação. Como elas estão sendo tratadas dentro de casa? Tem que ter esse olhar cuidadoso”, diz.
Para Maite Schneider, fundadora da Transempregos - projeto de empregabilidade para pessoas transgêneras no Brasil - as empresas que já estão mais maduras nos programas de diversidade aceleraram a parte de ouvidoria e de escuta ativa.
“Eles passaram a olhar nas entrelinhas, começaram a entrar na casa das pessoas. No caso da população transgênera, tem pessoa que teve que voltar para a casa dos pais, com famílias muitas vezes agressivas e que obrigaram essas pessoas a interromperem seus processos de transição. Então, as empresas ficaram preocupadas com isso”.
A própria migração para o home office pode ter sido mais fácil para as empresas que já contavam com programas de diversidade e inclusão, apostam os especialistas. “Falamos muito em D&I que não existe diferença entre vida pessoal e profissional. Agora, estamos entrando na casa um dos outros, vemos a família passando atrás da câmera, a criança gritando, mostra o profissional na sua integralidade. As empresas mais maduras com a pauta têm mais condições de transitar por esse momento com mais serenidade”, aponta Ricardo Sales, fundador da consultoria de gerenciamento em diversidade e inclusão Mais Diversidade.
Uma questão que tem aparecido bastante desde o começo da pandemia é a situação das mulheres no trabalho remoto. Além do aumento da violência doméstica, são elas que acabam tendo que lidar com uma agenda que inclui cuidar da casa, dos filhos e se dedicar ao trabalho.
“As empresas que já estavam trabalhando temas de equidade de gênero podem conseguir lidar melhor com esse cenário, principalmente na questão da flexibilidade. As que não estavam acostumadas, estão sofrendo um pouco mais e as suas colaboradoras estão sendo muito mais impactadas”, explica Anna Venturini, pesquisadora do AFRO – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial e sócia da consultoria de diversidade Pluraliza.
“Quando trabalhamos cultura inclusiva, a gente foca na pessoa e em como ela vai desenvolver o trabalho dela. O home office é uma realidade dentro dessa cultura. Discutimos isso até para a atração de alguns talentos, como pessoas cuja deficiência física a impeça de ir até a empresa”, completa Ana Bavon.
Proteção de grupos mais vulneráveis
Os primeiros efeitos da pandemia já começaram a aparecer. Conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgados no último mês, houve um saldo negativo de 1.067 milhão de postos de trabalho formais entre março e abril. Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) apontou que o número de desocupados no País no trimestre atual (fevereiro a abril) aumentou 4,9 milhões. A diferença aparece porque o Caged considera apenas os trabalhadores que são regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), já a PNAD Contínua inclui todo os tipos de trabalhadores formais e informais, empresários e funcionários públicos.
Mas essa é só a ponta do iceberg. Em um País de herança colonial e racista, ainda há a disparidade entre gêneros, raça e classes. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2019, a diferença de rendimentos entre trabalhadores brancos e pretos aumentou. Enquanto a renda média mensal de brancos é de R$ 2.999, a de pretos é de R$ 1.673, uma diferença de 55%.
Entre homens e mulheres a diferença também existe. A renda média das mulheres foi de R$ 1.985, ou 77% da renda média dos homens, que é de R$ 2.555.
Embora os dados mais recentes do IBGE sejam referentes a 2019, não é difícil imaginar que tamanha desigualdade vá se repetir - e possivelmente ser ampliada - durante a pandemia.
“Quais os critérios que vão ser utilizados para demitir? Como eu faço para garantir que eu não demita aqueles que são mais vulneráveis e que eu fiz um esforço para trazer para a minha empresa?”, diz Ricardo Sales. “Entre as empresas que estão fazendo cortes, eu não tenho dúvida de que as vulnerabilidades contam. Se temos uma pessoa que veio de um contexto de maior fragilidade, que demanda atenção especial, em uma empresa que não está atenta à discussão, há uma tendência a demiti-la”, continua.
De acordo com a auditora-fiscal do trabalho Erika Medina, em uma live no canal da deputada federal Tereza Nelma (PSDB), a Auditoria Fiscal do Trabalho encontrou indícios de rescisões de contrato irregulares de pessoas com deficiência em 3.040 empresas brasileiras, entre março e maio. Procurado, o Ministério do Trabalho não respondeu o contato feito pela reportagem.
“É preciso mais coerência na atuação das marcas e empresas. O mercado publicitário está demitindo mulheres e mantendo uma sede com aluguel absurdo no Itaim Bibi (bairro nobre de São Paulo). Manter uma sede é melhor do que manter pessoas que têm família e que deram o sangue para a sua empresa? Que mensagem você está mandando para os seus funcionários?”, questiona Nana Lima, diretora de impacto na Think Eva, consultoria de inovação social para questões de gênero (leia entrevista com ela mais abaixo).
Com a esperada retomada da economia e o fim da pandemia do coronavírus - ainda que não seja possível saber quando será isso -, as empresas precisarão lidar com os resquícios dos problemas levantados e, em muitos casos, intensificados pela pandemia. Além de ampliar desigualdades, é provável que a crise crie novos grupos vulneráveis.
Um levantamento realizado pela Rede de Pesquisa Solidária, grupo que reúne pesquisadores de diversas universidades e entidades do Brasil, apontou que a pandemia inaugurou um novo grupo de vulneráveis, o de homens e mulheres com ensino superior e que, apesar de terem vínculos estáveis de trabalho, foram afetados pelos efeitos econômicos da crise causada pelo novo coronavírus. Por estarem em atividades consideradas não essenciais, eles tiveram impacto de demissão e queda na renda.
“Pela primeira vez, grupos relativamente mais protegidos (e mais brancos) encontram-se ameaçados. No entanto, isso não elimina as desigualdades de raça e gênero no substrato. Mas, sim, as intensifica”
Com as novas vulnerabilidades, os grupos tradicionalmente mais vulneráveis são ainda mais prejudicados. “Vamos começar a falar de cultura inclusiva considerando todas as pessoas, que vão entrar no mercado de trabalho vulneráveis porque perderam empregos e entes queridos na pandemia, vamos chamar a atenção para saúde mental e segurança psicológica. Essa cultura de diversidade e inclusão vai se estabilizar como estratégia de sustentabilidade das empresas”, aposta Ana Bavon.
No pós-pandemia: teletrabalho, inovação e diversidade
Nos últimos dois meses, o teletrabalho passou a ser a realidade das empresas que prestam atividades consideradas não essenciais. Um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em parceria com a Infobase (empresa integradora de tecnologia da informação) e o Institute for Technology, Entrepreneurship and Culture (TEC), apontou que 30% das empresas que adotaram o trabalho remoto durante a quarentena irão mantê-lo por ao menos um dia na semana após o fim do isolamento.
Se, por um lado, o home office pode flexibilizar rotinas e contribuir positivamente para a qualidade de vida de muitos profissionais, os especialistas chamam a atenção para o fato de que esse também é um tema que precisa fazer parte da cultura inclusiva.
“É bacana fazer home office para quem tem uma estrutura bacana em casa. Eu sei o que é sair, pegar meu carro, trabalhar, estar dentro da empresa. O home office pra mim é uma opção, me traz conforto, minhas idas ao banheiro ficam mais fáceis, a minha locomoção. Se isso vira regra, se a contratação de pessoas com deficiência fica restrita ao teletrabalho, não é legal porque evita a convivência. Tem pessoas cuja deficiência faz com que se locomover fisicamente seja difícil, aí é uma grande oportunidade. Mas não pode ser desculpa para não investir em acessibilidade”, pontua Katya Hemelrijk.
Um ponto é unânime entre todos os especialistas entrevistados: as empresas vão passar a investir mais em diversidade e inclusão após o fim da pandemia. As explicações vão além da noção ética de que as empresas precisam ajudar as pessoas a reparar os efeitos negativos da pandemia. É estratégia de negócio.
“Se eu quero sobreviver, gerar criatividade e inovação, eu preciso ter ambientes com culturas inclusivas para que as pessoas que trabalham para mim estejam 100%. Eu sou homossexual e lembro muito do começo da minha carreira, os medos que eu tinha. Isso afeta o profissional. Se a pessoa não está totalmente presente psicologicamente porque ela não está confortável em ser quem é naquele ambiente, ela não vai gerar inovação. Diversidade é a forma mais inteligente de gerar negócios”, explica Filipe Sena, especialista de RH e Diversidade e Inclusão na GI Group.
A empresa lançou um programa de diversidade e inclusão em janeiro deste ano, mas teve que suspender as ações previstas para abril. A previsão é de que neste mês o programa seja retomado, com as inscrições de funcionários para os comitês de diversidade.
“Um exemplo bem básico: a partir do momento que temos 54% da população negra no Brasil e você não vê isso retratado no mercado de trabalho, então você tem que ficar incomodado. Como é a minha cultura? Ela provavelmente não é inclusiva e isso acaba gerando perda de performance. É mais do que comprovado que a inclusão propicia criatividade e inovação”, aponta Sena.
A Chubb, empresa de seguros, também voltará a intensificar o seu programa de D&I em junho, após adaptações digitais. “O nosso maior gap hoje é para igualar o número de profissionais negros à referência do IBGE, que mostra que eles são 56% da população brasileira. O nosso indicador mais distante é o de pessoas negras em cargos de liderança”, explica Rafael Potenza, líder de D&I da empresa.
Na área de software, a Salesforce Brasil foi uma das idealizadoras do movimento #NãoDemita, no qual se comprometeu a não demitir nenhum funcionário durante 90 dias. Neste período, o programa de D&I também continuou funcionando, com a migração dos eventos presenciais para o ambiente virtual. Assuntos como violência doméstica contra mulheres, combate à LGBTfobia e a inclusão de pessoas negras e com deficiência foram temas de palestras e treinamentos.
A Ambev, que possui programa de D&I desde 2015, também manteve as atividades dos grupos de diversidade em forma de treinamentos e palestras. “Só temos a ganhar tendo mais diversidade dentro de casa e diversas pesquisas mostram que equipes com diversas formações, experiências e personalidades apresentam melhores resultados. Por isso, é importante continuar com a agenda de D&I durante a pandemia, porque atualmente ela traz muitos benefícios de curto, médio e longo prazos”, aponta Gessica Tassi, gerente de Diversidade e Inclusão da Ambev.
No ano passado, a empresa também lançou um programa de estágio focado em universitários negros. Além da exclusão do inglês como requisito, a empresa passou a oferecer bolsa de estudos para os selecionados aprenderem o idioma.
“O principal benefício é ter um ambiente de trabalho no qual as pessoas se sintam à vontade e felizes para serem elas mesmas sem receio. O impacto dessa cultura inclusiva é positivo na qualidade de trabalho e até mesmo de vida desses colaboradores, levando em conta que passamos cerca de 8 horas por dia no trabalho”
O comum entre essas três empresas citadas? São todas multinacionais. “A pandemia tem mostrado que a nossa maior igualdade é a diversidade. A grande revolução nas empresas não vai ser nada se não for humana. Estamos aprendendo a lidar com o humano mais do que nunca. As empresas que não começaram a investir em diversidade e inclusão nem vão existir daqui a 10 anos”, provoca Maite Schneider, da Transempregos.
Para quem quer começar a investir em D&I
As empresas que decidirem investir em diversidade e inclusão daqui para frente precisam ir além de apenas inserirem profissionais de grupos vulneráveis dentro da organização, dizem os especialistas. É um programa completo: o treinamento das pessoas que vão receber o funcionário, o recrutamento e a seleção dessas pessoas, e o acompanhamento delas na empresa.
“Há empresas que querem fazer só projetos pontuais, só selecionam as pessoas, depois elas pedem demissão porque o ambiente é hostil e reproduz comportamentos racistas. Não querem acompanhar porque não querem investir, acham que é custo. Mas é investimento para as ações afirmativas serem efetivas”, explica Patrícia Santos.
A analista de talentos Jofrancis Modesto, de 34 anos, conta que o maior avanço que viu no mercado em anos de carreira é que algumas empresas têm entendido que é preciso implementar a cultura inclusiva. “Em todas as empresas pelas quais eu passei, eu entrei pela lei de cotas. Há cinco anos, quando eu fui entrevistada para o cargo aqui na EY, eu percebi que eu fui entrevistada pela minha performance. Em momento algum a entrevistadora perguntou o meu CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde)”.
Hoje, Jofrancis integra o comitê de diversidade para profissionais com deficiência dentro da empresa. O time é responsável por realizar reuniões periódicas com todos os profissionais com deficiência que a empresa tem no Brasil para elencar quais necessidades a empresa precisa se adequar para que eles se sintam incluídos e confortáveis.
“Para de fato transformar uma organização não basta ter uma demografia interna diversa, precisamos ter uma cultura inclusiva. Tem gente que acha que trabalho de diversidade é uma questão só de contratar. Isso não vai libertar o potencial criativo dos profissionais. Só vai acontecer se temos de fato um ambiente que proporciona troca”, destaca Djalma Scartezini.
ENTREVISTA
Nana Lima, cofundadora da Think Eva
‘Não dá para usar a mesma régua para todo mundo’
Letícia Ginak
Há cinco anos, Nana Lima busca fazer com que empresas brasileiras e multinacionais entendam e coloquem em prática ações sobre diversidade de gênero e intersecções no ambiente corporativo. Cofundadora da consultoria de inovação social Think Eva, Nana diz que em tempos de pandemia a missão se tornou ainda mais desafiadora.
Ao mesmo tempo em que é preciso encontrar estratégias para manter o próprio negócio, Nana e a equipe também enxergam a urgência de aprofundar as ações nas empresas que são clientes, fazendo com que elas pensem a questão também da porta para dentro e não apenas em seu público-alvo.
“A gente viu no início da pandemia no Brasil um certo silêncio das marcas ou o não entendimento de como elas tinham que continuar trabalhando as causas sociais que elas já trabalhavam antes desse contexto. Então você fala de empoderamento feminino quando está tudo bem, quando começa uma pandemia eu esqueço que isso é um pilar de atuação? Se você coloca uma lente de gênero e intersecções em uma análise sobre a pandemia, é claríssimo que os públicos minorizados vão ser muito mais afetados. Se já estava difícil antes, hoje vai ficar muito pior”, diz.
Com o relatório Mulheres em Tempos de Pandemia, organizado pela Think Eva e Think Olga (ONG criada pelas mesmas fundadoras da consultoria), Nana e equipe buscam elucidar as consequências da covid-19 para as mulheres em três âmbitos: violência contra a mulher; mulher, trabalho e economia; mulher e saúde. Confira na entrevista a seguir.
● Como a consultoria Think Eva continuou trabalhando o tema diversidade nas empresas com o recorte da pandemia? O que mudou?
Percebo que agora se ampliou um pouco a noção de diversidade e inclusão que tantas empresas usam e que virou moda em 2019. Uma empresa que antes falava que diversidade e inclusão era superimportante para ela agora está tendo que lidar com o tema da violência doméstica. E eles não linkavam isso com diversidade e inclusão, por exemplo. Achavam que era só contratar um monte de gente ‘diversa’, diferente da liderança, e tudo bem.
Hoje o que a gente fala para muitas empresas é: não é só a sua consumidora que pode sofrer violência doméstica, e você decide se você vai usar isso ou não como argumento de marketing. Agora todas as suas funcionárias estão enclausuradas dentro de casa e isso é um risco. Se você não olhava antes para isso, vai ter que conectar dentro do seu projeto de diversidade.
Ficou claro que a empresa que tinha isso como um propósito claro de atuação conseguiu se atualizar a esse cenário. E quem fazia de fachada ou só como discurso simplesmente apagou essa conversa.
● Muitas pessoas e empresas, no início da pandemia, consideraram a doença ‘democrática’, que acomete as pessoas da mesma forma. Esse discurso aconteceu também dentro das empresas?
Esse discurso vinha de uma posição muito privilegiada. Não sei em que cenário se via isso. Tem gente que está vivendo a quarentena em casa, com a funcionária trabalhando e fazendo ela pegar todo dia o transporte público, tirando ela do cuidado da família para cuidar de você. Ao mesmo tempo, tem quem está se virando com auxílio emergencial e mal conseguindo ter acesso a comida.
O abismo também acontece no ambiente de trabalho, por exemplo em análise de performance. Você não pode colocar a mesma análise para uma mãe solo que está trabalhando oito horas por dia via zoom com um filho pequeno em casa e sem uma rede de apoio (não tem escola, pais, vizinhos, ninguém que pode ajudar) e para um homem que está com a mulher dona de casa cuidando dos filhos, fazendo almoço, ele se tranca no quarto das 8h às 17h e consegue trabalhar perfeitamente. Isso para mim é a chave da diversidade e da inclusão. Não dá para usar a mesma régua para todo mundo porque as pessoas estão partindo de pontos muito diferentes nessa situação.
A empresa que não entender vai ser forçada a tal porque não vai ter nenhum resultado de performance, de lucro e de cultura interna pós-pandemia. Você está criando uma desconexão com os seus funcionários. É muito clichê, mas está mostrando quem é de verdade e quem age para benefício próprio. Não adianta ter uma empresa em pé quando a saúde mental dos seus funcionários está um caco.
● Como você enxerga o cenário feminino após a pandemia?
Por um lado, eu acho que existe um aumento de consciência da população sobre diversas questões que antes a gente não olhava: desde o peso da economia do cuidado, o quanto a gente precisa ter alguém na nossa casa cuidando da nossa casa para a gente poder sair e gerar capital lá fora. E então talvez isso possa gerar uma valorização maior desse tipo de trabalho, entender melhor o impacto dele.
Também estou dando mais palestras sobre autocuidado e parentalidade positiva durante a quarentena para ambientes de cultura interna. Também há uma noção maior por partes das pessoas sobre qual é o limite de atuação das marcas. Marcas, o protagonismo não é seu. Não adianta distribuir cesta básica e querer uma medalha. Eu acho que essa ampliação de consciência pode ser muito válida para as consequências no futuro.
Por outro lado, me dá muito receio de que o que as mulheres estão vivendo demore muito tempo para se recuperar. No nosso report Mulheres em Tempos de Pandemia, a gente faz um paralelo com a crise do ebola na África Ocidental, em que os homens recuperaram as suas rendas muito mais rápido do que as mulheres. Por lá, aumentou o número de violência física, sexual, perda de terras e patrimônios pelas mulheres.
São consequências que demoram para a gente se recuperar tanto em um nível físico como psicológico. A gente já perdeu. Independentemente do que a gente consiga diminuir muito nas consequências, elas já estão sendo muito graves para a gente. E a crise coloca uma lupa nas desigualdades.
Fonte: Estadão